MEMÓRIA – Castor de Andrade, o Poderoso Chefão tupiniquim
A precursora, a avó Dona Eurides, a IaIá, passou a mexer com a bicharada numerada no início do século 20, numa banca modesta na rua Fonseca, em Bangu, misto de bairro e forno natural localizado na zona oeste carioca e famoso pelas incontáveis quebras de recordes de altas temperaturas em seu território. Começou anos depois de a atividade ganhar as ruas do Rio de Janeiro, vencendo os muros do Jardim Zoológico, onde fora inventado em 1892 pelo barão João Batista Vianna Drummond, o Barão de Drummond, como ferramenta inocente para turbinar a arrecadação destinada ao trato dos animais.
Eurides passou o comando para Eusébio de Andrade, o Seu Zizinho, pai de Castor, condutor de trem de profissão, que transformou a atividade em negócio lucrativo - e, com ela, ficou rico. Seu Zizinho expandiu a rede, também a partir de Bangu, num período em que o bicho tinha perfil bem distante da atividade criminosa marcada por acusações de manipulação de resultados, sequestros, parcerias com o tráfico, assassinatos e apoio a ações linha-dura do regime militar.
Paixão pelo mar, o time do Bangu e o samba da Mocidade
No berço familiar confortável de Seu Zizinho, Castor Gonçalves de Andrade e Silva nasce em 12 de fevereiro de 1926. Entre dribles constantes nos professores e familiares para nadar nas então águas limpas da Praia do Flamengo, zona sul carioca, estuda no tradicional Colégio Pedro II e faz o curso de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dono de metalúrgica, lojas comerciais e postos de gasolina, começa a gerenciar as bancas de Seu Zizinho antes mesmo de formar, para suprir as ausências do pai, mais interessado, àquela altura, nas terras e no gado comprados com o dinheiro da contravenção.
Sob seu controle, a brigada zoológica controlada pela família deixa o patamar de negócio lucrativo, estabelecido pelo pai, para se transformar num império. Apesar de imprimir um ritmo voraz de expansão da estrutura, Castor vetou, no início, a ligação do negócio com outras ações ilegais, sobretudo o tráfico de drogas. Queria o bicho romanticamente só, mas, anos depois, num momento em que as bancas sentiam o baque da forte concorrência gerada pelo arsenal de novas loterias oficiais, acabaria por render-se ao mercado sedutor das máquinas de caça-níqueis e videopôquer.
Doutor Castor foi o primeiro capo do bicho a perceber o quanto as ações comunitárias e participações sociais poderiam "legitimar" sua principal atividade. No comando, reforçou o papel de mecenas no futebol do Bangu, clube do bairro-sede do império que, antes apoiado pelo pai e por ele na diretoria, conquistara pela segunda vez o Campeonato Carioca, em 1966, com um ótimo elenco, que incluía craques como Paulo Borges e Almir Pernambuquinho.
O bicheiro não media esforços, muito menos grana, para contratar jogadores, enfiá-los em um de seus imóveis na Barra da Tijuca e reforçar o time. No auge, o Bangu de Castor esteve perto de ser campeão brasileiro em 1985. Perdeu o título na disputa de pênaltis com o Coritiba, após o empate em 1 a 1 no Maracanã lotado, num dia em que todo o Brasil parecia torcer para a equipe suburbana do "estádio das moças bonitas".
Castor adotou também a principal escola de samba de Bangu, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Sob seu patronato, a escola conquistou os títulos do carnaval carioca de 1979, 1985, 1990, 1991 e 1996. Em 1984, ao lado de outro capo do bicho, Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, então presidente da Unidos de Vila Isabel, e de parceiros líderes de outras oito escolas cariocas, fundou e foi o primeiro presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a Liesa.
Por essa presença em quase tudo o que parecia seduzir as classes populares, Doutor Castor trafegou com desembaraço e paparicos pelos ambientes legais e formais dos poderes municipal, estadual e federal. Era respeitado e tinha pedidos atendidos por políticos, empresários, figurões da Justiça e generais ligados ao poder. Um deles, Waldir Alves Muniz, teria recebido, como secretário de Segurança do Rio, "orientação" para "evitar problemas com o Doutor Castor de Andrade". Outro, o ex-presidente João Batista de Oliveira Figueiredo, teria quebrado o cerimonial em um evento, distanciando-se de autoridades que estavam em seu entorno e indo ao encontro do bicheiro para cumprimentá-lo com ênfase aos olhos de todos.
Como se percebe, as linhas entre o oficial e o oficioso jamais foram bem delineadas no País, sobretudo quando o segundo tem a popularidade objeto de desejo do primeiro. Mesmo assim, seria impossível construir uma estrutura tão poderosa, milionária e infiltrada no tecido social fluminense e brasileiro como a do bicho sem uma boa quantidade de polêmicas, conflitos e vidas deixadas pelo caminho.
O 'fim do problema' com o cachorro doente de Tim Maia
Com Doutor Castor não haveria de ser diferente. Existe uma história (ou lenda?) que liga o rei do bicho, por ironia suprema, ao sacrifício impiedoso de um... bicho. Quem costumava contá-la era o cantor Tim Maia. O soberbo intérprete de Sossego e Azul da Cor do Mar teria sido contratado por Castor para um show no aniversário de 15 anos de uma neta fã do artista.
Ao receber os dois enviados do chefão que o levariam ao local da apresentação, Tim alegou que seu cachorro estava muito doente para... isso mesmo: não ir dar o show. Após vários minutos de conversa e resistência de Tim, um dos armários de Doutor Castor teria chegado mansamente ao lado do cão enfermo e pow: um tiro apenas, na cabeça, e o bicho foi de vez. "Pronto, Tim: o problema do cachorro está resolvido. Agora vamos para o show", teria dito o enviado.
Ninguém deixa claro se os funcionários telefonaram antes para o bicheiro em busca de conselho ou se despacharam o cão por iniciativa própria. Os relatos dão conta, no entanto, de que Tim teria cantado como em poucas ocasiões, recebido os cumprimentos carinhosos de Doutor Castor ao final e chorado a morte do amado até ficar com dó dele próprio. Detalhe: no ombro do capo.
Vinda da mente genial, mas muitas vezes delirante de Tim Maia, a história bem que pode ser fruto de criatividade ficcional. Mas, tendo em vista os dois protagonistas, tem também condições plenas de ser verdadeira. De qualquer forma, os episódios prosaicos estão longe de ser maioria na trajetória de Castor.
'Invasão' da Bahia e ponto final em Mariel Mariscot e China Cabeça Branca
A extensão de seus negócios para o Nordeste gerou conflitos com rivais locais e deixou como saldo a morte de dezenas de pessoas em Salvador. A cúpula do jogo do bicho do Rio, com o pacto de respeito à delimitação de territórios de Castor e outros líderes, foi consolidada nos anos 1970. Tudo parecia calmo e bem dividido, até 1976, quando Euclides Ponar, o China Cabeça Branca, banqueiro de bicho atuante no bairro da Tijuca, denunciou em entrevista que os chefões decidiram fraudar resultados evitando o sorteio dos números mais escolhidos nas apostas para fugir do pagamento de grandes prêmios. Foi o que bastou para Cabeça Branca aparecer morto, logo depois, com um tiro de pistola.
Em outro episódio, os barões, liderados por Castor, reagiram à tentativa do ex-policial Mariel Mariscot de Mattos, um dos Doze Homens de Ouro da Polícia Civil do Rio de Janeiro no final dos anos 1960 e ex-integrante do famigerado Esquadrão da Morte, de fazer parte do negócio.
Mariscot e sua intenção foram despachados juntos numa sequência de balas disparadas contra o ex-policial no dia 8 de outubro de 1981, no Centro do Rio, em frente a uma das fortalezas do bicheiro Raul Capitão, no centro do Rio. Mariscot era sócio de um dos filhos de Capitão, Marcos Aurélio Corrêa de Mello, o Marquinhos, abatido a tiros de metralhadora sete anos depois, em maio de 1988.
Em abril de 1994, o Ministério Público apreendeu disquetes de computador e livros-caixa de Castor, em Bangu, com o registro de pagamentos para juízes, policiais, advogados, deputados, políticos, jornalistas e artistas. Como sempre, todos desmentiram. Como até então, ninguém foi condenado.
Castor de Andrade esteve preso em ao menos duas ocasiões. Na primeira, em 1969, após a promulgação o AI-5 pelo regime militar, passou uma temporada no presídio da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ), por enriquecimento ilícito. A segunda temporada foi iniciada em outubro de 1994, quando ele foi reconhecido e capturado no Salão do Automóvel de São Paulo, após 203 dias foragido da sentença de prisão dada a ele e a outros 13 integrantes da cúpula do bicho pela juíza Denise Frossard. De bigode, farta barba postiça e cabelos pintados de preto, o chefão sempre implacável com traidores foi traído por pulsão singela, quase juvenil: a vontade irresistível de admirar os bólidos modernos que tanto amava. “Estava escrito”, disse ao ser preso.
Luxo, conforto, champanhe e comida da boa na prisão
A carceragem da Polinter, para onde foi levado, passou por uma espécie de retrofit à castoriana. Celas foram transformadas em suítes de luxo, com ar-condicionado, frigobar, lavadoras de roupa, tevês e videocassetes, o top da parafernália cinematográfica individual da época. Festas com champanhe, bebida da boa e iguarias eram constantes. Para equilibrar as ações, Doutor Castor bancava também a reforma de instalações administrativas do complexo e o conserto de viaturas da polícia. Generosamente.
Castor tinha miocardiopatia dilatada, doença chamada pelo povão de "coração de boi", e sofreu com cinco edemas pulmonares nos últimos anos de vida. A saúde complicada levou a Justiça a liberá-lo para cumprir o restante da pena em seu belo apartamento na Avenida Atlântica, com a condição de não deixar o luxuoso imóvel de frente para o mar de Copacabana sem autorização judicial – coisa que ele jamais cumpriu.
Morte e enterro com batida de surdo, pétalas de rosa e Agnaldo Timóteo
Em uma das escapulidas, em 11 de abril de 1997, Castor levou alguns minutos de carro para chegar à casa de amigos no Leblon, zona sul do Rio. A pancada do infarto veio na calmaria da mesa em que jogavam carta. Castor foi levado na correria para o Prontocor, na Lagoa Rodrigo de Freitas, ao lado do Leblon, mas desembarcou morto.
Velado na quadra da Mocidade, em sua Bangu querida, foi enterrado no cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, também na zona oeste carioca, com fogos de artifício, batidas de surdo, chuva de pétalas de rosa e Agnaldo Timóteo soltando a voz ao lado do corpo. No Carnaval do ano seguinte, o pessoal do bicho no samba pediu ao pessoal do samba no bicho, e também ao povaréu, um minuto de silêncio e surdos, cuícas, pandeiros e tamborins calados, em homenagem póstuma a Doutor Castor, no desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. A falta de barulho fez supor que todos atenderam.
Andrade X Andrade: briga e morte em família pela herança do chefão
Um infarto tirou a vida de Castor de Andrade aos 71 anos em 11 de abril de 1997 – e detonou uma disputa feroz no ambiente familiar do banqueiro. A decisão do capo de indicar o sobrinho Rogério de Andrade para assumir o comando do bicho na zona oeste carioca e em outros pontos do Estado do Rio deixou contrariado o seu filho Paulo Roberto Andrade, o Paulinho, que declarou guerra ao primo pelo controle do jogo. Em 21 de outubro de 1998, Paulinho e um segurança foram assassinados na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. A polícia identificou e prendeu como autor dos crimes o ex-PM Jadir Simeone Duarte, que acusou Rogério de ser o mandante.
O lugar de Paulinho na batalha foi assumido por um cunhado, Fernando Ignácio Miranda, que, segundo a polícia, controlava a empresa Adult Fifty, exploradora de caça-níqueis na zona oeste. Rogério teria entrado no mercado das máquinas em 1998, no comando da Oeste Rio. Rogério e Fernando começaram a bater de frente em 2001, mesmo ano em que a polícia passou a apreender aparelhos de caça-níqueis e videopôquer no estado do Rio. Os conflitos se iniciaram com ataques às máquinas de um grupo por integrantes do outro, mas logo evoluíram para tiroteios que deixaram mais de 50 mortos.
Rogério escapou de uma tentativa de assassinato em 2001. Nove anos depois, em abril de 2010, um de seus filhos, de 17 anos, morreu num atentado de estética e dimensões cinematográficas, ao estilo dos liderados pelos capi da máfia italiana, também na Barra da Tijuca: uma bomba transformou num monte de ferro fumegante o carro que o rapaz dirigia. Foi colocada próxima ao banco do motorista para pegar o pai, mas acabou com a vida do filho menor, que dirigia o carro naquele momento.
Com informações de Eduardo Marini, do R7.
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